Vacinação contra a covid-19: será necessário rever o plano de vacinação no cenário de escassez de doses

Não haverá controle da pandemia se não houver um esforço coordenado para que se vacinem, em um primeiro momento, de forma rápida e universal, os grupos mais vulneráveis visando a redução da carga de adoecimento e de morte.

Por: Ana Brito MD, MsC, PhD*  e Tereza Lyra MD, MsC, PhD*

A importância das vacinas, uma das maiores conquistas tecnológicas do século XX, é indiscutível para a saúde pública. Por volta de 1796, o médico inglês Edward Jenner, após observar sobreviventes chineses de um surto de varíola, desenvolveu a primeira vacina conhecida, imunizando um garoto de oito anos, quando injetou na criança um soro composto por varíola bovina. Em 1885, Louis Pasteur usou o mesmo princípio para criar a vacina contra a raiva animal, até então facilmente transmitida para humanos. A partir daí, surgiram vários outros tipos de imunizantes, sendo um dos mais celebrados a vacina oral contra a poliomielite, desenvolvida pelo cientista polonês-americano, Albert Sabin, em 1960.

O poder da vacinação não está somente na proteção individual. A imunização coletiva evita a propagação em massa de doenças que podem levar à morte ou a sequelas graves. Para além do impacto sobre o perfil de morbimortalidade e o aumento de sobrevida das populações humanas, os avanços decorrentes da aplicação das vacinas também se expressam nas condições socioeconômicas. Estima-se que, atualmente, as vacinas evitam cerca de quatro mortes por minuto, o que gera uma economia mundial equivalente a R$250 milhões por dia (OMS, 2020).

Ao discutirmos as medidas para o enfrentamento da pandemia da covid-19, maior desafio sanitário nos últimos 100 anos, e diante da inexistência de tratamento etológico específico contra o SARS-CoV-2, a vacina surge como a principal arma capaz de conter a doença, conjuntamente com as medidas preventivas de isolamento social, higienização das mãos e uso de máscaras. Paralelamente ao cenário de expansão da pandemia, com aumento de novas infecções e de óbitos de forma dramática, a corrida por vacinas contra a covid-19 tornou-se um dos principais assuntos no mundo. Cientistas de todo o planeta vêm trabalhando em ritmo frenético, e é uma conquista científica surpreendente que várias vacinas seguras e eficazes tenham sido desenvolvidas e licenciadas em menos de um ano depois que o novo corona vírus foi isolado e sequenciado. No entanto, a autorização das primeiras vacinas não é suficiente. Há ainda mais imunizantes em desenvolvimento que precisam ser avaliadas para garantir que haverá doses para imunizar a todos, uma vez que não será possível controlar a covid-19 sem que se atenda à demanda global e aos diferentes grupos demográficos.

Com as primeiras vacinas em uso desde dezembro de 2020, até 14 de janeiro deste ano, foram aplicadas cerca de 30 milhões de doses, em 47 países, a maioria deles de alta renda, o que revela iniquidade no processo de distribuição global de vacinas e expõe a grande desigualdade que existe no acesso a essas ferramentas que salvam vidas. As desigualdades regionais, portanto, levantam preocupações em relação ao agravamento da atual pandemia, uma vez que a opção de alguns países em imunizar toda a sua população, em vez de respeitar a orientação internacional de vacinar os mais vulneráveis de todos os países, neste primeiro momento, pode comprometer o controle da pandemia. É urgente um esforço coordenado para que se vacinem, de forma rápida e universal, os grupos mais vulneráveis, visando à redução da carga de adoecimento e de morte. Desta maneira, será necessário vacinar em torno de 2 bilhões de pessoas até o final de 2021, os 20% mais vulneráveis da população de cada país, independentemente da faixa de renda.

No contexto mundial, o Brasil é um dos países com a pior atuação no enfrentamento da pandemia. Sem um plano nacional de controle e sem ações coordenadas nos diferentes níveis de governo, amargamos o segundo lugar em mortes pela doença e nos situamos em terceiro lugar no pódio de novas infecções diárias. E, como consequência direta do descaso do governo federal, somos um dos últimos países mais populosos do mundo a iniciar a vacinação. Somente a partir do último dia 17 de janeiro, após aprovação e autorização da Anvisa do uso emergencial das vacinas Coronovac (Sinovac em colaboração com o Instituto Butantã, SP) e a vacina Oxford (AstraZeneca e Universidade de Oxford em colaboração com a Fiocruz, RJ) começamos a vacinação contra a covid-19.Esses pedidos de liberação, feitos pelo Instituto Butantã e Fiocruz, totalizam 12 milhões de doses, que foram distribuídas entre as 26 unidades federadas e o distrito federal, proporcionalmente ao tamanho da população de cada local. Esse número de dose, no entanto, será insuficiente para imunizar o primeiro grupo de prioridades, quais sejam, profissionais de saúde (extensiva a outras categorias da força de trabalho em saúde),indígenas, populações ribeirinhas, e idosos vivendo em instituições de longa permanência.

Com 210 milhões de habitantes, o percentual a ser coberto pela vacinação, composto pelos maiores de 18 anos, é da ordem de 160 milhões de pessoas. Como as vacinas são de duas doses, são necessárias 320 milhões de doses. Portanto, mais do que ficarmos discutindo sobre eficácia de vacinas, questão reservada aos pesquisadores e cuidadosamente tratada pelas agências reguladoras para liberar um produto imunobiológico, precisamos focar no que de fato nos interessa como sociedade, e que se constitui como o maior problema que enfrentamos: precisamos lutar para “ter vacinas: e,como citou Gonçalo Vecina, médico fundador da Anvisa, essa necessidade coloca em segundo plano, “qual vacina:, pois não temos escolhas. E, acrescenta, “não fossem o Butantã e a Fiocruz não teríamos vacinas: (Vecina G., Isto É, Nº 2662 22/01).

Um outro desafio decorrente do número insuficiente de doses dos imunizantes está relacionado ao plano de vacinação que vem sendo adotado no Brasil, pois não considera as características das desigualdades e da disseminação da doença nas populações mais vulnerabilizadas de nosso país. Segundo pesquisa realizada pela UFRJ, cidades com o maior número de trabalhadores informais foram as mais afetadas pela pandemia da Covid-19 (htps://cultura.uol.com.br/notcias). O Brasil ocupa o humilhante oitavo lugar em maior desigualdade do mundo, portanto, vacinar com as mesmas regras dos países do hemisfério norte é um imenso equívoco. Precisamos reavaliar e usar racionalidade técnica e social para os planos de vacinação nos diferentes estados brasileiros. Sem uma política ostensiva de proteção social, os adultos jovens que necessitam buscar comida, trabalhar, não conseguem fazer isolamento social e estão sendo desproporcionalmente afetados pela pandemia. Na definição dos grupos prioritários, a exemplo dos profissionais de saúde, quilombolas, indígenas e população de rua, seria importante que também fosse considerada uma escala de hierarquia de risco de exposição àqueles trabalhadores do transporte coletivo, serviços essenciais, segurança pública e, particularmente, os professores da educação básica. Fazendo um parêntese para o último grupo, não é redundante ressaltar que é necessário diminuir o prejuízo de um ano sem aulas para as crianças; não propriamente pelos conteúdos teóricos, pois esses serão facilmente recuperados, mas pela socialização. Assim, defendemos a proteção imediata desses professores para que voltem a dar aula e as crianças, a frequentar as escolas.

Urge, portanto, que os gestores públicos reúnam profissionais da vigilância epidemiológica e sanitária, pesquisadores e especialistas da área para que proponham regras de vacinação, em consonância com a dinâmica de disseminação do vírus e o quantitativo de doses e tipos de vacinas disponíveis. Vale destacar que o Programa Nacional de Imunização (PNI), mundialmente reconhecido pela ampla oferta de vacinas em seu calendário e competência técnica, tanto pela experiência em vacinação de rotina quanto pelas bem-sucedidas campanhas de vacinação em massa, há mais de 40 anos, tem condições de garantir eficiência e agilidade na administração das vacinas contra a covid-19. Nosso PNI pode ser modelo internacional pela celeridade e capilaridade da vacinação, uma vez que conta com mais de 38 mil salas de vacinações, distribuídas em todo território nacional, com universalidade garantida pelo SUS, através da Estratégia de Saúde da Família.

Acreditamos que este vírus veio para ficar. Muito provavelmente, quando começarmos a computar as primeiras milhões de doses das vacinas disponíveis é possível que apareçam variantes novas capazes de infectar. É o mesmo que já aconteceu com a gripe. Portanto, embora as vacinas em uso tenham se mostrado eficazes nos ensaios clínicos de fase 3, podem não ser suficiente para superar a pandemia. A superação só será possível com ação política, planejamento, organização e participação da sociedade. Como primeiro passo, o governo federal precisa cumprir sua função primordial de condutor das políticas de controle da Covid-19 e redução de danos. Os outros poderes da República e todas as esferas de governo precisam atuar de modo coordenado e efetivo, cumprindo com suas responsabilidades. Toda a sociedade brasileira deve se mobilizar para enfrentar as crises da pandemia. Trata-se de uma luta política urgente e necessária pela democracia, com base nos princípios de justiça social, equidade e transparência, mediante cooperação e entendimento humanitário.

* Ana Brito MD, MsC, PhD,  é Professora Adjunta (aposentada) da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Pernambuco (FCM/UPE) e Pesquisadora Sênior do Instituto Ageu Magalhães da Fundação Oswaldo Cruz (IAM/Fiocruz)

* Tereza Lyra MD, MsC, PhD é Professora Adjunta (aposentada) da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Pernambuco (FCM/UPE) e Pesquisadora do Instituto Ageu Magalhães da Fundação Oswaldo Cruz (IAM/Fiocruz)

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